Feliz quem tem uma PEDRA em SAGRES

Palavras-chave | Keywords

"Boca do Rio" "Ermida da Guadalupe" "Farol de São Vicente" "Fauna e Flora" "Fortaleza de Sagres" "Gentes & Paisagens" "Gentes de Vila do Bispo" "Geologia e Paleontologia" "História do Mês" "Martinhal" "Menires de Vila do Bispo" "Paisagens de Vila do Bispo" "Tales from the Past" "Vale de Boi" 3D Abrigo Antiguidade Clássica Apicultura ArqueoAstronomia Arqueologia Experimental Arqueologia Industrial Arqueologia Pública Arqueologia Subaquática Arquitectura arte Arte Rupestre Artefactos Baleeira Barão de São Miguel Base de Dados Bibliografia biodiversidade Budens Burgau Calcolítico Carta Arqueológica de Vila do Bispo Cartografia Cetárias Cista CIVB-Centro de Interpretação de Vila do Bispo Complexo industrial Concheiro Conservação e Restauro Descobrimentos Divulgação Educação Patrimonial EPAC Escolas & Paisagens de Vila do Bispo Espeleo-Arqueologia Estacio da Veiga Estela-menir Etnografia Exposição Figueira Filme Forte Fotografia Geographia Grutas Homem de Neandertal Idade Contemporânea Idade do Bronze Idade do Ferro Idade Média Idade Moderna Iluminados Passeios Nocturnos Ingrina Islâmico Landscape marisqueio Medieval-Cristão Megalitismo menires Mesolítico Mirense mitos & lendas Moçarabe Moinhos Museologia Navegação Necrópole Neo-Calcolítico Neolítico Neolítico Antigo NIA-VB Paleolítico Património Edificado Património natural Património partilhado Pedralva Pesca Povoado Pré-história Proto-história Raposeira Recinto Megalítico/Cromeleque Referências RMA Romano Roteiro Sagrado Sagres Salema Santos Rocha São Vicente Seascape Toponímia Vila do Bispo Villa Romana
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História do Mês de Dezembro | A Aventura da Arqueologia


A ‘História do Mês’ consiste numa iniciativa expositiva do Centro de Interpretação de Vila do Bispo iniciada em janeiro de 2015 onde, mensalmente, se apresenta um objeto e/ou um associado discurso informativo. Além da divulgação, valorização e partilha de determinados apontamentos e curiosidades da memória coletiva do território, pretende-se, com esta iniciativa, provocar hábitos de visita ao nosso equipamento cultural.

Na nossa 36.ª História do Mês, a última do ano de 2017, desta feita intitulada ‘Aventura da Arqueologia’, damos conta dos Propósitos, Métodos e Reflexões desta Ciência Humana e Social.

Visite o Centro de Interpretação de Vila do Bispo e aproveite a oportunidade para explorar a 19.ª edição da Mostra de Artistas do Concelho de Vila do Bispo.











































A AVENTURA DA ARQUEOLOGIA
Propósitos, métodos e reflexões de uma 
Ciência Humana e Social

O conhecimento científico produzido até aos nossos dias leva-nos a crer que, num planeta com cerca de 4,5 bilhões de anos, os primordiais hominídeos tenham surgido apenas há 3-1 milhões de anos... o que quer dizer ontem, nas últimas horas da escala geológica da história da própria Terra! Já os primeiros representantes do Homem Moderno, ou seja, do ilustre Homo sapiens (do Latim “Homem sábio”), parecem ter dado os seus pioneiros passos, em terras de África, somente há uns escassos 200 mil anos. Na região hoje designada por “Concelho de Vila do Bispo” sabemos que a presença humana remonta há cerca de 33 mil anos, considerando os dados arqueológicos exumados na jazida paleolítica de Vale de Boi.
Passados uns orgulhosos 200 mil anos de inteligente existência, exploradas todas as geografias da nossa morada planetária, com um pé na Lua e outro a caminho de Marte, deparamo-nos com a inexorável e platónica fatalidade de que “só sabemos que nada sabemos”. Afinal não existem ciências realmente exatas nem verdades verdadeiramente absolutas, nunca existiram, muito menos no âmbito das ciências humanas e sociais entre as quais se integra a Arqueologia.
No dealbar do século XXI os alicerces do conhecimento científico ainda se encontram assentes numa ‘babel’ de dúvidas, pois a Humanidade, progressivamente, tem vindo a produzir mais perguntas que respostas.
Ainda assim, esta desoladora consciência pode transformar-se numa vantajosa liberdade para o cientista, em particular para o arqueólogo. Enquanto Ser Humano e indivíduo carregado de preconceitos, o arqueólogo poderá assumir e melhor conviver com a dicotomia homem cientista vs Homem objeto, pois na Arqueologia a fronteira entre o cientista e o objeto de estudo – o Homem – é bastante volátil. Metaforicamente, o arqueólogo encontra-se dos dois lados do microscópio, pelo que os preconceitos são naturalmente incontornáveis.
Mais que cientista, o arqueólogo poderá assim assumir-se como um privilegiado produtor de narrativas, um especialista contador de histórias, construídas segundo critérios e metodologias científicas mas necessariamente traduzidas para a comunidade local, para os legítimos herdeiros da memória coletiva de um determinado contexto sociocultural.
Mas afinal o que é a Arqueologia? Como surgiu? Qual a sua missão? Quais os seus métodos?
Etimologicamente, “Arqueologia” apresenta-se como uma palavra com origem no Grego antigo, composta pelo prefixo “arque”, que significa antigo, seguido do sufixo “logos”, que significa ciência (arque [antigo] + logos [ciência]), ou seja, muito genericamente Arqueologia é a ciência que estuda os “tempos antigos”.
Com um berço científico no Positivismo do século XIX, a Arqueologia assume-se, hoje, como uma emancipada ciência humana e social dedicada ao estudo do Homem e das sociedades humanas entretanto extintas algures no Passado, partindo da análise dos seus vestígios e culturas materiais – estratigrafias culturais,  artefactos, restos estruturais das suas construções e restos orgânicos das suas atividades. Por outras palavras, trata-se do estudo cultural da espécie humana e da sua organização social no Espaço e ao longo do Tempo, numa evolutiva perspetiva diacrónica de base histórica, antropológica e tecnológica.
Para o efeito, e segundo reiterados métodos científicos, a investigação arqueológica procura todo o tipo de vestígios, os “fosseis-diretores” deste passado humano, chamando-lhes de artefactos e ecofactos.
Tal como a Geologia, ciência gémea da Arqueologia por partilhar um berço comum nos finais do século XIX, a investigação arqueológica adopta a Estratigrafia como um princípio básico, ou seja, a noção da deposição, sobreposição e sucessão do Tempo em camadas horizontais, traduzidas como unidades cronoestratigráficas. Esta dinâmica sobreposição de depósitos temporais, do mais antigo para o mais recente, do mais profundo até à superfície dos solos atuais – a ‘profundidade do Tempo’ –, é datável pela análise cronocultural dos artefactos integrados em cada camada, em cada ‘fatia’ de Tempo.
Evidentemente que a cultura material varia conforme os tempos, como facilmente se pode depreender das muito genéricas e abrangentes periodizações clássicas conhecidas como “Idade da Pedra” (a Pedra Lascada no Paleolítico e a Pedra Polida no Neolítico) e “Idade dos Metais” (Idade do Cobre, ou Calcolítico, Idade do Bronze e Idade do Ferro). Seguindo esta lógica, muito provavelmente os arqueólogos do futuro irão designar o período em que vivemos como ‘Idade do Plástico’!
Se à superfície dos terrenos atuais encontramos objetos nossos contemporâneos, familiares e facilmente reconhecíveis na sua função, por exemplo uma tampa de garrafa de plástico, uma carica de garrafa de vidro ou, com sorte, uma moeda de 1 euro, se escavarmos um buraco e ‘aprofundarmos o Tempo’ vamos eventualmente descobrir ‘coisas’ mais antigas, como por exemplo fragmentos de louça, de cerâmica e, quem sabe, moedas de Escudos, de Réis ou mesmo de Época Romana!
Outra forma de melhor compreender a relação cronológica com a cultura material das gentes é ainda mais simples e muito familiar: ir à casa dos nossos avós, ou de pessoas de gerações mais antigas, é de certa forma um exercício semelhante à visita a um museu. Lá poderemos encontrar objetos já obsoletos na sua função, entretanto ultrapassados pela evolução tecnológica. Hoje, pelo menos em contextos europeus, já ninguém utiliza um candeeiro a petróleo no seu quotidiano. Desde os finais do século XIX estes objetos foram progressivamente substituídos pela iluminação elétrica. Em Portugal, tal inovação sentiu-se sobretudo depois da II Guerra Mundial, só nos finais dos anos de 40 do século XX. Porém, todos reconhecemos estes antiquados artefactos e sabemos exatamente para que serviam. Se recuarmos no tempo, à Idade Média, ao Período Islâmico ou mesmo até à Época Romana, sabemos que se utilizavam candeias, lamparinas ou lucernas, sobretudo produzidas em cerâmica e alimentadas a azeite ou outras gorduras vegetais e animais. Continuamos a falar de objetos similares e exatamente com a mesma função.
Ainda que de forma redutora, podemos admitir que os arqueólogos são especializados antiquários sem fins comerciais, que reconhecem a função de objetos produzidos pelo Homem, atribuindo-lhes valor cultural e autores em determinado local e momento da História.
Mas os arqueólogos também são verdadeiros detetives do Passado, pois procuram e investigam pistas de ações e de movimentos individuais, personalizados, de alguém, e vestígios de eventos e de cenários sociais dos quais já não existem testemunhos diretos, ocorridos algures noutra época, de que já não há memória viva.
Associados a uma imagem estigmatizada por românticas personagens hollywoodescas, como Indiana Jones e Lara Croft, os arqueólogos são ainda aventureiros “caçadores de tesouros”, encarnando o papel de pioneiros exploradores-descobridores de paisagens culturais (Arqueologia da Paisagem), calcorreando-as, a pé-posto, e interpretando-as à luz dos seus dias, imaginando e compondo quadros ‘neo-realistas’ com fragmentos extraídos de esquecidos contextos socioculturais, com verdadeiras peças do enorme e sempre incompleto puzzle da história da existência humana.
A investigação de depósitos crono-culturais permite, assim, abrir uma janela sobre o Passado, possibilitando um parcial entendimento de primitivos comportamentos humanos, de arcaicas práticas sociais, de hábitos alimentares, de gestos tecnológicos, de rituais funerários... Porém, estas estratigráficas ‘fatias de Tempo’ não são estanques, fazem parte integrante de uma narrativa maior, de uma História incompleta. As suas interfaces são especialmente apetecíveis para o arqueólogo historiador, pois nelas poderá identificar diferenças materiais e propor periodizações e os momentos de ruptura cultural, de mudança e de transformação social que definiram a evolução da Humanidade até à atualidade. Esta abordagem historicista define a Arqueologia enquanto ciência de relevância social – revelar o Passado para melhor compreender o Presente e conjeturar o Futuro.
Considerando a importância histórica e material e o latente potencial informativo contido nos depósitos de Tempo investigados pela ciência arqueológica, os processos de escavação representam verdadeiros atos de subtração, ações inevitavelmente destrutivas e necessariamente “lentas”, pois exigem todo o rigor metodológico possível numa irrepetível oportunidade de registo de realidades de outrora. Mais uma vez, a analogia do detetive apropria-se na perfeição ao trabalho de um arqueólogo. Não se tratando de um cenário de crime (mas até poderá ser!), um contexto arqueológico merece toda a atenção, toda a minúcia na observação e no detalhado registo do pormenor.
Uma escavação arqueológica do século XXI já não se resume ao desenterrar de ruínas, de antigas arquiteturas legadas por povos ou civilizações já extintos, à descoberta de objetos antiquados, de artefactos exóticos, de relíquias de outros tempos para alimento de vitrines em museus. Hoje, um punhado de terra, extraído de uma determinada camada cronoestratigráfica, é tratado como um verdadeiro tesouro, revestindo-se de um incomensurável valor informativo. Pólenes, sementes, ossos e carvões permitem, por exemplo, recuperar paisagens ancestrais, saber que plantas e animais povoavam remotos cenários e compreender a evolução ambiental de determinados contextos, até aos nossos dias. Na verdade, a Arqueologia é uma ciência do passado que recorre a tecnologias do Futuro.
Enfim, ser arqueólogo é uma verdadeira aventura na incrível aventura da História do Homem.
texto de Ricardo Soares
arqueólogo da Câmara Municipal de Vila do Bispo