Encontramo-nos nos alvores da 1.ª e maior
revolução da História da Humanidade – a Revolução
Neolítica. Com epicentro de origem na região do Próximo Oriente, há cerca
de 12.000 anos, as suas ondas de impacto “rapidamente” se difundiram por via
terrestre, ao longo dos grandes rios e por mar. Progressivamente, “saltitando”
através da costa mediterrânea, a primeira vaga destes ecos de mudança acabam
por atingir o nosso extremo continental, há cerca de 6.000 anos.
Na prática, o Neolítico traduz-se no
advento de um revolucionário pacote de novidades: a técnica da pedra polida (“neo-lítico” 8), a domesticação de animais e de plantas e a descoberta da tecnologia cerâmica.
No âmbito da produção de instrumentos de
pedra, além de um evolutivo aperfeiçoamento de técnicas precedentes, surge a técnica
da “pedra polida”, designadamente nos machados, também conhecidos por “pedras
de raio” 9.
Muito paulatinamente, foram dominados
alguns animais selvagens, por cruzamento selectivo de espécimes mais “mansos”, particularmente
a cabra, a ovelha, o boi (auroque) e o porco (javali), enquanto o cão há muito
que acompanhava fielmente o Homem. Também foram seleccionados e domesticados determinados
tipos de cereais (trigo e cevada) e de leguminosas (ervilha, lentilha e fava),
emergindo uma inédita “cultura agrícola”.
Por fim, mas não de menor importância, assinala-se
a descoberta da tecnologia cerâmica. Tendencialmente feminina, a alquimia da
arte oleira irá, pela primeira vez na História da Humanidade, convocar os 4
elementos para a transformadora criação de uma matéria nova. Os recipientes de
barro cozido vão agora possibilitar a transformação dos alimentos ao fogo e o
armazenamento e conservação de excedentes agro-pecuários, assumindo, ainda, uma
função simbólica nos rituais funerários.
Munidas destas inovações, surgem, então, as
primeiras sociedades de pastores-agricultores.
Porém, estes contagiantes elementos,
disseminados por gentes neolitizadas, não foram contactados e absorvidos de
forma linear e homogénea pelas pré-existentes comunidades nómadas de
caçadores-recolectores mesolíticos. É certo que o choque cultural aconteceu, resta
saber a que nível.
A emergência do fenómeno neolítico, no sul
do território actualmente português, e a forma como as suas determinantes
inovações foram disseminadas, tem sido explicada segundo dois diferenciados
modelos teóricos: o modelo difusionista e o modelo indigenista. No caso do
modelo difusionista, as novidades do pacote neolítico terão sido propagadas por
expansão cultural de grupos neolíticos que, por via marítima, colonizam e
aculturam as comunidades indígenas pré-existentes que vão contactando ao longo
da sua diáspora.
Em oposição, o modelo indigenista
explica-se pela natural e muito gradual evolução cultural das próprias comunidades
indígenas de caçadores-recolectores mesolíticos, em resposta a determinismos de
ordem ambiental, sendo o contágio das novas modas neolíticas transmitido por
contactos de vizinhança e trocas de proximidade com comunidades semelhantes do
ponto de vista evolucional.
Contudo, também podemos admitir um modelo
de certa forma intermédio. As comunidades nativas de caçadores-recolectores e
marisqueiros, pré-existentes na nossa região, denotando já uma tendência para a
sedentarização em áreas mais demarcadas, estabilizam-se em acampamentos
inicialmente sazonais, nas margens de estuários ou em bocas de rio, junto do
mar – favorecidos nichos ecológicos que proporcionavam a exploração de uma abundante
e ampla diversidade de recursos. Através de comprovadas redes de tocas a longa
distância, próprias das sociedades do final do Mesolítico, terão sido selectivamente
importado alguns dos itens do pacote neolítico, dispensando a efectiva
movimentação de grupos originalmente neolíticos. Por outro lado, a “troca de
sangue” dos casamentos entre diferentes grupos humanos, além de uma instintiva
atracção pela diferença e pelo exótico, constitui uma naturalmente necessária
estratégia de combate aos riscos genéticos da consanguinidade, tendo
introduzido outras inovações culturais, como a olaria, um produto feminino por
excelência. Nesta conjuntura, também será de admitir algum grau de contágio
directo, com a chegada de pontuais grupos mais aventureiros, provenientes de
paragens mais longínquas, neolitizados “a montante” num processo que
seguramente decorreu de oriente para ocidente.
Posto isto, algumas observações tornam-se
objectivas: temos consciência de diferentes realidades e sensibilidades
regionais, um verdadeiro “direito à diferença”; de distintos graus e ritmos de
transformação; o mar sempre constituiu uma “via rápida” de disseminação
cultural; o nosso território ainda hoje significa uma finisterra
geográfica, um “fim do mundo”, o princípio de outro...
Independentemente do modelo e do grau de
contacto da revolucionária cultura agro-pastorícia, coloca-se um dilema, de
certa forma existencial, às gentes de caçadores-recolectores-marisqueiros por
aqui pré-estabelecidas, uma escolha determinante para a sua própria sobrevivência:
aderir por interacção e aculturação às novas “modas” neolíticas, ou seja, a sua
“neolitização”; ou resistir a uma “colonização” cultural até à extinção.
Uma coisa sabemos com toda a segurança... o
Neolítico venceu, as populações misturam-se, crescem, expandem-se e
complexificam-se, germinando as futuras desigualdades sociais e intergrupais,
antevendo-se, no horizonte, conflitos pelo poder e pelo domínio dos excedentes
agrários.
Seja como for, na nossa região, os dados arqueológicos
parecem indicar uma certa continuidade, pelo menos ao nível de uma já tradicional
actividade económica – o marisqueio. A par da integração dos inovadores itens
do pacote neolítico, a apanha de marisco continua bem presente no registo
arqueológico durante o Período Neolítico e por diante!
Na área de Sagres, no sítio da Cabranosa, os Serviços Geológicos identificaram, em 1970, um povoado precisamente
representativo deste período, datado por Carbono14 de há 6.500 anos
(Cardoso e Carvalho, 2003). Desde cedo, os trabalhos ali realizados
consagraram bibliograficamente a Cabranosa como um sítio-chave para o entendimento
do processo de neolitização do território actualmente português (Ferreira, 1970; Guilaine e Ferreira, 1970; Zbyszewski et al., 1981), sendo consensualmente definido como um
acampamento-base, excepcionalmente representativo do Neolítico Antigo regional (Cardoso et al., 2001; Carvalho e Cardoso, 2003; Soares, 1997; Soares e Silva, 2003, 2004).
8 “Neolítico”
significa “Pedra Nova”, do grego neo = novo + lithos =
pedra, conotado com a novidade da Pedra Polida.
9 Curiosa esta denominação popular, explicada
pelo facto de estes machados de pedra polida ocorrerem frequentemente em meios
rurais, no decurso de trabalhos de lavoura, que na falta de entendimento para a
sua verdadeira origem, mas com a percepção de não se tratar de objectos
produzidos pela natureza, foram tradicionalmente associados à queda de raios e
utilizados como amuletos de protecção doméstica para as trovoadas.
Ilustrações Vítor Fragoso
Texto Ricardo Soares